domingo, 19 de janeiro de 2014

MARIA FORMIGUEIRA



A manhã estava nublada e muito fria por causa do vento e de uma fina garoa que caía bucolicamente sobre a cidadezinha. Era inicio do inverno. Poucas pessoas caminhavam vagarosamente e bem agasalhadas pelas ruas. O relógio da Igreja marcava 6 horas da manhã.

A rua principal, Santo Antonio, de paralelepípedos, toda escorregadia devido àquela fina garoa que caia de mansinho. Era um digno espetáculo observar aquela cena tão romântica:

... As jardineiras nos alpendres das casas todas molhadinhas e as folhas das plantas pareciam encolher-se de frio que até parecia se poder ouvir suas exclamações ora de contentamento e agradecimento por estarem sendo abençoadamente regadas pela natureza, ora porque estava bastante frio mesmo... brrrrrrr !!!

A carrocinha que trazia leite e produtos da fazenda – frutas, legumes e verduras, subia chorosa a ladeira e Seu Manoel, o leiteiro, bradava gentilmente com Malhado:

- Ôa, ... ôa Malhado ! Vamos amigão, temos ainda que entregar todo leite e voltar logo pra casa! Ôa, Malhado... vamos !

Malhado era um cavalo já meio cansado de idade e de trabalho e puxava todos os dias aquela carrocinha silenciosamente. O pavimento da rua, de pedras, todo escorregadio, obrigava-o a um esforço ainda maior, mas, mesmo assim, ele continuava subindo a ladeira silenciosamente.

- Bom dia, Seu Manoel !
- Bom dia, Maria Formigueira! Você não está com frio? Está aí toda descalça e sem agasalho !
- É, Seu Manoel ... !

Seu Manoel pegou logo um saco vazio de feijão, todo em tramas grossas de algodão e ofereceu a Maria Formigueira que tremia de frio, com uma saia tão fina e uma blusinha toda rasgada. Ela, rapidamente colocou sobre os ombros e num sorriso tímido agradeceu:

- Que Deus lhe pague, muito obrigada !

Ninguém conhecia o passado de Maria Formigueira, quem era e de onde teria vindo. Ela era uma negrinha franzina, cabelos curtos, dentes maltratados, pés descalços todo machucados, andarilha pela cidade à procura de um prato de comida já que ninguém tinha coragem de perguntar sobre suas necessidades e tentar oferecer-lhe um trabalho.

Era muito popular porque invariavelmente estava embriagada.

Mas, chamava muito a atenção, entre tantas outras coisas, que ela até sabia ler e escrever, embora com muita dificuldade, pois era de se esperar que naquele estado fosse totalmente analfabeta.

Ela carregava sempre uma pedrinha e, quando podia, fazia uma pequena oração e em seguida escondia a pedrinha embaixo de algum buraco ou tijolo que encontrava por onde passava.

Ninguém entendia o que queriam dizer aquelas pedrinhas escondidas.

- Olha lá aquela macumbeira de novo ... ! Deve estar jogando praga em cima de alguém... Essa negrinha é um perigo pra essa cidade, alguém tem que tomar uma providência e mandá-la embora daqui ! Só pode ser macumba, ela colocou mandinga contra alguma ou algumas pessoas embaixo daquela pedra... eita “bicho do mato” !

Assim, muitas pessoas sempre pensavam e diziam sobre ela.

Maria Formigueira continuou descendo a ladeira até chegar à ponte do riacho que dividia a cidade. Ficou lá olhando demoradamente, gesticulando e falando sozinha. Devia estar, como pensavam as pessoas sobre ela, fazendo algum tipo de prece em benefício ou malefício de alguém.

Foi mais adiante e lavou seu rosto naquelas águas geladas que desciam na corredeira e depois se espreguiçou, molhou novamente o rosto, olhou ao redor, em silêncio, balançou a cabeça, sorriu... e começou a perambular... até chegar à casa de uma senhora, idosa, que a acolheu com um largo sorriso:

- Bom dia, Maria Formigueira! Como você está, minha filha? Aí nessa garoa, toda molhada, ensopada, vai pegar uma pneumonia. Entra logo que vou preparar um leitinho quente com café e um pãozinho com manteiga e umas roupas pra você trocar !

Ela olhou Dona Aparecida com lágrimas nos olhos, entrou na casa em silêncio, tomou um banho bem quentinho e colocou roupas limpas e secas que a Senhora havia separado pra ela.

- Oi, Dona Aparecida, a Senhora não precisa se preocupar comigo. Estou bem! A Senhora é uma Santa de pessoa e Deus vai sempre olhar pela Senhora.
- Minha filha, você precisa descansar... fica aí andando pela cidade... E veja se não toma mais essa bebida que está acabando com você... Você ainda é tão nova, precisa reagir. Confia em Deus que sua vida vai melhorar !
- Ah, Dona Aparecida,... a Senhora me lembra minha mãe... coitadinha que já está lá no Céu. Ela era tão boazinha comigo, mas uma doença levou-a embora tão cedo e eu fiquei sozinha nesse mundo. Não sei quem é meu pai...
- Minha filha, você não está sozinha. Tem muita gente que gosta de você. Toma logo esse lanchinho que preparei e depois vai lá no quartinho dormir um pouco que você vai ficar bem !

Ela olhou bem Dona Aparecida, em lágrimas de felicidade... comeu e bebeu com muita vontade e depois foi dormir.

À tardinha, ela saiu da casa e novamente, como fazia todos os dias, começou a perambular pela cidade, parando em cada vitrine de loja para olhar os brinquedos, as roupas, as novidades... sempre em silêncio. Pegou uma pedrinha e fez uma oração, como habitual, foi até uma árvore da calçada e, colocou-a junto as raízes.

As pessoas olhavam intrigadas e, já sabendo que ela havia passado o dia em casa de Dona Aparecida, imaginaram logo que fosse alguma praga contra aquela boa senhora.

Com uma varinha, deslocaram a pedra, sem colocar as mãos e lá nada estava escrito !!!. O que seria isso? Em todo lugar havia uma pedrinha assim !.

A noite começava a dar seus ares e, com ela, o frio aumentava e a garoa continuava. Maria Formigueira entrou num boteco e, mesmo sem pedir nada, o balconista encheu um copo de cachaça e entregou a ela.

Ela olhou fixamente para o balconista, seus olhos ficaram mareados, olhou para o copo, olhou para as pessoas que assistiam ironicamente em silêncio e bebeu todo o conteúdo do copo. Em seguida mais outro e mais outro... até não saber mais onde estava ou quem era ... e foi saindo cambaleando pelas ruas sob aquela garoa que já se fazia mais forte.

Ao descer novamente aquela ladeira da rua principal, enquanto as pessoas do boteco observavam sua caminhada, ela deparou-se com um vulto escuro na esquina e, de tão embriagada que estava, começou a conversar com ele, sem perceber que era apenas um poste de ferro, de energia elétrica:

- Oi meu neguinho,... só você que pode me entender: minha mãe morreu e eu estou aqui nesse mundo vagando sem saber pra onde ir... nem sei quem é meu pai, não tenho irmãos, não tenho família, ... por onde vou todos me olham com medo...

O poste ali parado, nada respondia.

- Eu estava com fome e me deram pinga. Com esse frio... você me desculpa, viu neguinho... tem muita gente boa nesse mundo, mas tem gente que não está dentro da gente pra saber o nosso sofrimento...

O poste ali parado continuava sem responder

- Dona Aparecida, uma mulher muito boa, uma Santa de pessoa, me deu de comer, de beber e até me deixou tomar banho e me deu essas roupas aqui... que agora já estão todas molhadas de novo. Mas eu não quero atrapalhar a vida de ninguém não, viu meu neguinho. Só você que pode me entender porque você também é um neguinho, como eu, e deve entender como são essas coisas.

- Vou colocar de novo essa pedrinha aqui lá embaixo daquele banquinho ... você fica aí de olho e não deixa ninguém pegar, viu? Eu tenho que deixar essas lembrancinhas ... Mas você só fica aí parado, meu neguinho? O gato comeu a sua língua? Vem cá e me dá um abraço que eu vou embora dessa cidade hoje mesmo pra ver se encontro o meu lugar... !

Nesse instante, ainda sem perceber que falava com um poste, ela abriu os braços e abraçou com muita vontade pensando ser algum moço que estava ouvindo sua história.

O poste tinha um fio descascado e, devido ainda mais à chuva, quando Maria Formigueira o abraçou houve uma descarga elétrica na coitada que a jogou deitada de costas no chão, toda dolorida e assustada, demorando alguns minutos pra se refazer.

- Oi meu neguinho ! Até você me maltrata? Minha mãe foi embora, não tenho mais ninguém nessa vida... e você me dá um coice desse tamanho? O que eu fiz de mal pra você ?

Ela desceu a ladeira desconsolada, às lagrimas e soluços e foi se deitar em um sofázinho de vime que havia na varanda de uma casa. Levantou as almofadas e colocou várias pedrinhas e dormiu um sono profundo !

Pela manhã, os cachorros da casa latiam sem parar.

Seu João, o dono da casa, assustado, foi logo ver o que estava acontecendo e quando abriu a porta da sala que dava para o alpendre viu aquela negrinha lá dormindo profundamente sem se mexer...

Reconheceu-a e aproximou-se dela com cuidado. Olhou-a, colocou sua mão sobre a testa de Maria Formigueira, olhou sua esposa que também assistia e disse:

- É a Maria Formigueira! Ela morreu dormindo aqui, como uma anjinha, coitada. E espalhou todas essas pedrinhas...

A cidade toda ficou logo sabendo do acontecimento. Chamaram o padre que imediatamente mandou preparar um velório com muito respeito àquela pobre criatura. Ninguém entendia o porquê de tanto carinho com ela e, então, o padre disse:

- Essa pobre criatura estava perdida. Vinha muitas vezes à Igreja rezar pela memória de sua mãe e também pela saúde e paz de todos os moradores desta cidade. Ela nunca fez mal a ninguém, mas sim orou todos os dias por todos e agora ela deve estar lá no céu nos braços de sua querida mãe.

Todos que assistiam àquele velório ficaram em silêncio envergonhados e com remorso de seus pensamentos sobre aquela moça e, emocionados, muitos oravam com lágrimas nos olhos desejando paz a Maria Formigueira e perdão para seus próprios pecados da indiferença e do preconceito.

O Delegado aproximou-se do padre e não resistiu a perguntar como porta-voz de todos os moradores também inquietos sobre o que seria o mistério de Maria Formigueira:

- Perdão Senhor Padre, já que o Senhor conhecia bem a Maria Formigueira, poderia nos dizer por que é que ela sempre colocava uma pedrinha escondida em algum lugar ? Todos sempre imaginaram que isso fosse algum tipo de magia contra alguma pessoa...

O Padre olhou bem para o Delegado e para todos que ficaram em silêncio esperando sua resposta:

- Meus filhos, essa mocinha amava a todos dessa cidade, apesar de sua vida desregrada. Ela perdeu sua mãe muito cedo. Aprendeu a escrever e pouco escrevia, mas, ela fez uma promessa, que eu só poderia revelar após sua morte.

- Eu sempre lia a Bíblia para ela ,explicando o significado de cada passagem. Um dia, li sobre Pedro 2:4-8, onde Pedro usa a imagem da pedra para descrever a comunidade Cristã, como sendo a Pedra Principal na construção de nossas vidas. Ela entendeu então que Deus, O Pai, é o Gande Construtor e Jesus, O Filho, O Instrumento, ou seja, a Pedra Principal para a construção e salvação de nossas vidas.

- Assim, Maria Formigueira fez uma promessa que durante todos os dias de sua vida iria depositar uma pedrinha, após uma oração, desejando que Jesus habitasse o coração de todos e protegesse sua querida mãe que havia partido tão cedo para o Céu.

- E ela, todos os dias, independente de sua situação, orou por todos e colocou uma pedrinha rogando a Jesus que iluminasse e guardasse a todos os viventes desta cidade...

- Espero que nesse momento nos juntemos todos em oração para que essa pobre criatura alcance um lugar entre os justos e repouse em paz!

As pessoas atendendo ao chamado do Padre, cabisbaixas, envergonhadas, entreolharam-se e silenciosas voltaram para suas casas  ... !

Muitos anos se passaram...

Ninguém mais se lembra daquela negrinha inocente, humilde e cheia de esperanças chamada Maria Formigueira !

Raul de Abreu
mar / 2008

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