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Logo cedo a cidade começava sua rotineira agitação, suave, romântica, alegre e repleta de vontade de viver!
Batiam palmas à porta de casa logo às 7:00 horas da manhã e Olívia, a ajudante da casa, ia até o alpendre atender:
- Olha o leite,... leite fresquinho,... tem queijo, ... pamonha,... pão caseiro que a patroa acabou de fazer,... frutas,... verduras,.... !
Era o Seu Zacarias que vinha com sua carroça, de porta em porta, todas as manhãs, entregar o leite e os demais produtos de seu sítio. Ele nunca se esquecia de agradar as crianças das casas trazendo sempre algumas frutinhas, pedaços de rapadura, e tantas outras coisas que eram esperadas com muita ansiedade.
O dia começava maravilhosamente bem. E era assim todos os dias!
- "Mata que é bicho! Mata que é bicho! .. "tomara que chova três dias sem parar, cai água no esgoto e corre para o mar ... ! Mata que é bicho.... mata que é bicho !"
Era o velho Sr. Riccieri Bernini, um italiano de mais de Oitenta anos de idade, chegando à sua lojinha de artigos domésticos com aquele velho paletó de brim cáqui, chapéu de feltro,.. e um largo sorriso,... sempre brincando com as pessoas que moravam vizinhas e às outras que passavam!
Sr. Riccieri era muito engraçado. Eu adorava aquele velhinho: ele falava sempre com um sotaque que eu achava bonitinho e ele, ainda, tinha um grande coração !
Eu ficava ali no alpendre de minha casa, agarrado na mureta, observando o movimento todo, enquanto Olívia preparava a mesa para o café da manhã. Eu ficava ali "meio escondido" esperando a Simplícia passar.
Eu morava na Rua Santo Antonio nº 398, na última casa antes da Ponte do Rio "Arrependido".
Simplícia era bem gorda e vinha , andando, todas as manhãs do Patrimônio, bairro onde morava, ,... não sei pra onde ia.... e eu sempre queria brincar com ela. Ela sempre vinha toda desconfiada que eu fosse lhe “pregar uma peça” .
A cidade era dividida em duas partes: Antes da ponte do Rio era o lado chamado "da cidade", e após a ponte era o lado conhecido como "Patrimônio", que assim era chamado porque ali ficava a Igreja principal e a casa Paroquial onde morava o Padre.
A cidade era pequena, muito pequena, simpática, alegre, maravilhosa...
Antes de chegar à ponte, ela parava na esquina e ficava olhando para o alpendre de minha casa pra ver se eu estava lá escondido!
E eu sempre estava lá. Ficava quietinho me preparando pra dar um susto nela !.
Não havia coisa melhor na vida que correr atrás da Simplicia e dizer: “Passo a morte, passo a morte. Agora a morte está com você!”
Ela corria gargalhando... mal conseguia correr de tão gorda. E quando eu conseguia “passar a morte” nela, meu dia ficava completo. Eu contava na escola pra todo mundo, como que se isso fosse a maior realização!
“Passar a morte” era apenas uma brincadeira que consistia em surpreender uma pessoa e passar-lhe a mão em qualquer parte do corpo e dizer “passei a morte” e essa pessoa teria que surpreender outra e fazer a mesma coisa senão ficaria com medo de morrer.
Simplicia, daquele tamanho, dificilmente surpreendia alguém, pois se a pessoa percebesse e saísse correndo, ela não iria conseguir transferir aquela sorte para a outra e assim ficaria triste o dia todo.
Não sei quem inventou essa brincadeira. Eu só me lembro que foi a Simplicia quem me passou a morte pela primeira vez. Eu devia ter uns Sete anos de idade e ela talvez uns Quinze ou mais anos.
Seu pai, o Seu Zito, vendia doces e amendoins. Era muito amigo de meus pais. Sua família era muito simples, muito humilde, lembro-me que seus pais tinham muitos filhos. Eles moravam numa casa simples com um quintal enorme com muitas árvores frutíferas.
Meu pai me levava todo fim de semana na casa do Seu Zito pra tomar um cafezinho muito gostoso que sua mulher fazia, comer uns bolinhos,.... Eles tinham uma cisterna e meu pai levava sempre um balde grande pra pegar aquela água fresquinha, deliciosa. Eu achava que aquela água era “benta” e que curava muitas doenças.
Enquanto ficávamos ali sentados num banquinho ou no chão batido, a Simplicia estava sempre sorrindo e ameaçando correr atrás de mim pra me passar a morte. Eu “mijava” de rir com a Simplicia!
Aonde ela ia, todas as pessoas gritavam alegres pra ela:
- Oi Simplicia,.... oi Simplicia.... oi Simplicia !
Ela estava sempre sorrindo, gargalhando...!
Coisinhas tão infantis, tão bobas ... tão ingênuas,... tão puras !
Um dia Simplicia conseguiu me surpreender,... eu estava tão distraído que nem imaginava a possibilidade de encontrá-la aquele dia:
- Passo a morte! Passo a morte! Agora a morte está com você!
Fiquei assustado! Simplicia olhou-me bem fixo nos olhos, abraçou-me, beijou-me no rosto, acariciou meus cabelos... derramou lágrimas e me disse:
- Meu menino do coração, eu amo esse loirinho de ouro ! A Simplicia aqui adora você!
Ela foi indo embora para o Patrimônio enxugando as lágrimas,... andando e olhando sempre pra mim, acenando toda emocionada!
Fiquei ali parado olhando quieto...
Naquele dia eu não passei a morte pra ninguém. Fiquei o dia todo calado, só pensando naquele abraço, naquelas lágrimas, naquele olhar tão angelical da Simplicia!
Nunca mais passei a morte pra ninguém.
Passei a esperar a Simplicia com um sorriso, como um cachorrinho que ninguém sabe se vai fazer arte !
Ela me olhava desconfiada, vinha chegando bem devagar.... abraçava-me forte, dava-me um doce,.. um beijo e ia embora sorrindo e acenando com a mão!
Quando fiz anos mudei-me para outra cidade. Não vi mais a Simplicia. Muitos anos se passaram !.
Certo dia, quando eu já estava com uns Trinta anos de idade, voltei à cidade e fiquei sabendo que ela havia “partido para o Céu”. Bateu uma dor no coração daquelas ! Fiquei parado ali na ponte, naquele lugar onde ela passava sempre, observando aquela água clarinha e pensando na Simplicia,...
De repente, eu a vi caminhando em minha direção, descendo a rua lá do Patrimônio, a Rua Santo Antonio, toda feliz, de braços abertos, emocionada...
- Meu menino de ouro! Você voltou pra me ver.... você voltou pra me ver! Eu estava esperando faz tanto tempo ! Senti tanta saudade de você !
SIMPLICIA
Ela abraçou-me forte, beijou-me e desapareceu ! Não sei como, ... mas desapareceu !
- Simplicia,... eu sei que você está no Céu e sempre foi a minha Anjinha da Guarda,... eu só queria lhe dizer que minha vida é tão bonita quando me lembro de seu sorriso, do seu abraço, das brincadeiras, ... que o seu amor, por mim, por todas as pessoas, está selado para sempre em nossos corações !.
Que o Grande Arquiteto do Universo por Sua Infinita Sabedoria e Bondade sempre a Ilumine e Guarde !.
Com muito amor e carinho,... do seu loirinho !
Raul Ramos Neves de Abreu
Outubro de 2007
Raul Ramos Neves de Abreu
Outubro de 2007