Beatriz, era a moreninha que mais sabia dançar gafieira !
Todo final de semana eu cumpria um rigoroso ritual em minha cidade.
Na 6ª feira à noite (claro, só podia ser à noite porque eu estudava durante o dia) encontrava minha turma e dávamos umas voltinhas na quadra principal do centro (era costume do pessoal fazer o famoso “footing” pra ver o pessoal que ia ou saía dos cinemas) e em seguida íamos até a choperia Pinguin onde encontrávamos mais algumas pessoas da turma¸ tomávamos uns aperitivos e depois íamos visitar os “bailinhos” dos Centros Acadêmicos pra ver como é que estava o “ambiente” em cada lugar.
Havia, como principais locais, os Centros Acadêmicos da Medicina, o do Direito, o FOF – Odontologia e Farmácia, o da Filosofia e Letras e alguns outros que não lembro direito, além, é claro, de vários Clubes Sociais.
Eu estava cursando o primeiro ano de Medicina e a vestimenta principal era a roupa branca. (a mulherada da cidade era louca por um jovem de roupa branca! ) A moda era o jovem usar uma camisa branca “panamá”.
Estudantes de Direito e de Engenharia roíam as unhas de inveja! (e contavam suas vantagens).
Explico: cozinheiro usa roupa branca; pai de santo usa roupa branca; cabeleireiro usa roupa branca; bicheiro usa roupa branca. Mas os estudantes de medicina, farmácia, odontologia TÊM que usar roupa branca pra chamar a atenção e manter o STATUS de Doutor !
Lembro até quando eu tocava na Banda Marcial do Marista, com aquele lindo uniforme e aquela formação de orientação militar, que as mocinhas corriam desesperadas e aos gritinhos lançavam gracejos aos integrantes da banda. Não havia uma apresentação em que não éramos assediados (que delícia!) e acabávamos dando até autógrafos. (hoje em dia, a moda é o cara quando vê uma linda garota passeando com o seu cachorrinho, perguntar o número do celular do bichinho).
- “ Oi lindinha,.... esse seu cachorrinho tem telefone ????
Dos Centros Acadêmicos existentes, pelas óbvias razões o mais badalado era o da Medicina. Ali se concentravam os jovens mais requisitados de toda a cidade e cujos pais eram mais pacientes quanto aos horários que retornavam as suas casas.
Enquanto os outros Centros começavam seus bailinhos por volta das 20 horas, o da Medicina nunca começava antes das 22 horas e ia até por volta de 2 ou 3 horas da madrugada. Todos eram freqüentados somente por estudantes.
Em um desses fins de semanas, em Julho – Férias escolares, num sábado, eu estava na Medicina, casa lotada, alegria geral, a banda tocando e resolvi dançar com uma garota que tinha sido minha colega no científico.
Regina era linda e na classe de aula sentava-se ao meu lado, me deixava maluco de desejos todos os dias do ano todo,... mas,... era namorada de um amigo da turma, o Carioca. Às vezes me dava até vontade de chorar porque mulher de amigo a gente tinha que respeitar.
Com todo respeito comecei dançando com a Regina. Aquela era a primeira vez que eu dançava com ela, pois nunca tinha visto antes desacompanhada do Carioca. E, por isso mesmo, perguntei onde andava o namorado (com uma vontade de ouvir que haviam terminado).
Respondeu ela que o Carioca tinha viajado para o Rio durante as férias, mas que, o relacionamento deles não estava lá essas coisas....
Bateu uma tremedeira daquelas diante do que ela havia respondido. Pensei:
- “ vou pra cima dela ou será sacanagem trair a amizade do amigo que ta longe?”
Fiquei ali uns minutos hesitante com o que fazer com a Regina, o que falar, mas o “martelo da consciência” começou a bater na minha cabeça dizendo-me;
- “Ô seu filho desgarrado duma figa, se tu não gostas de galhos enfeitando essa sua cabeça oca, não queira agora enfeitar a cabeça do seu amigo que está ausente!”
Olhei com um sorriso tímido pra Regina, já com vontade de arrumar uma desculpa para pararmos de dançar, mas ela foi tão aconchegante (talvez o frio da madrugada ou algum gole de cuba-libre) que não consegui evitar que tocássemos nossos rostos.
Meu corpo estava trêmulo.... (devo até ter dito que a noite estava fria... que mérda de situação) e o meu “infalível companheiro” tava lá embaixo se contorcendo todo de vontade de encostar-se àquelas coxas deliciosas da Regina... mas não podia, porque trair amigo é sacrilégio!
Mas, por outro lado, pensei:
- “Regina já namora o carioca faz uns 4 anos. Com certeza já andaram brincando de “mão naquilo e aquilo na mão”, isso pra ser bonzinho e não arriscar que já brincaram de “aquilo lá e lá naquilo”... então, se o meu “infalível companheiro” resolver bater na porta e dizer “Alô”, vamos ver o que acontece!
E assim, após incontáveis HUM SEGUNDO, eis que o “infalível companheiro”, todo ali de braço armado, parecendo o mastro da Bandeira Nacional, deu o ar da graça e foi se acomodar naquele macio leito de felicidade das pernas da Regina.....
Eu olhava pra lá, pra cá, pro teto, pra todo lugar com medo de olhar bem nos olhos da Regina que estava quieta só apreciando o acontecimento.
Todo sem jeito, olhei-a e resolvi criar coragem pra dizer alguma coisa e fui interrompido antes de começar a falar, pois ela, amiga e educada, olhou-me com um sorriso (acho que me desculpando pela ousadia e talvez gostando) e disse que queria parar um pouquinho... mas assinalando que poderíamos dançar de novo logo mais.
Pra falar a verdade, eu fiquei com um medo danado ela tivesse se ofendido e que, quando estivesse com o Carioca contasse o que havia passado naquela noite. Ai,... que mérda pensar em encarar meu amigo e explicar o inexplicável!
Fiquei tão de cabeça quente que resolvi sair dali imediatamente. Convidei meus amigos pra irmos a outro lugar, embora àquela hora da madrugada nenhum outro Centro Acadêmico estivesse aberto.
Foi então que o Humberto sugeriu que havia uma casa de dança chamada Paulista, no fim do bairro Campos Elíseos, lá perto das “casas de luz vermelha” ...
Caramba, justo naquele lugar? Quem é que teria coragem de ir naquele lugar que era freqüentado por um povinho esquisito e mal encarado?
Como desafio de coragem, fomos os 5 amigos com o espírito desbravador dos MOSQUETEIROS para conquistar mais um espaço!
Em lá chegando, num lugar meio fora de mão, já percebemos que não nos olhavam com bons olhos. O silêncio sob os olhares vigilantes era desmoronador.
Humberto, cara-de-pau, alto e forte foi logo se dirigindo à porta daquele local e nós apenas íamos acompanhando em silêncio. Um cidadão de descendência afro (“na verdade eu iria escrever algo “como “ UM NEGÃO MAL ENCARADO duns 2 metros de altura e uns 3 de largura”) foi logo inquirindo:
- O que ceis qué aqui branquélo? Tá vendo não que aqui é casa de moralidade? Si tu ta querendo baixar nível aqui, seu branquélo, é bom puxá logo o carro senão o pau vai cumê !
Tremendo de medo, Humberto, que tinha naturalmente uns 2 metros de altura, ficou logo mudo, gago e um anão de menos de 1 metro. Achei até que tivesse molhado as calças...rs
Fiquei macho! Fui lá à porta encarar o Negão (agora que se foda quem quiser me censurar por não ter escrito como se deve: “afrodescendente”, pois o malandro também não me chamou de “eurodescendente” ou “caucasianodescendente”)
No meu dicionário eu só aprendi que Homem que é Homem é macho!... O resto é resto (etéreo, hetero, homo, gay, gls, etc.... é tudo viado). E negão que vai me chamando de branquélo e me fazendo ameaça, eu vou logo é dizendo: “ lembranças praquela sra. Sua querida mãe que ta lá na zona fazendo caridades, meu irmão! E se mexer comigo, meu pai é Delegado. Tá falado ?
Cara, meus amigos me olharam pasmos. Nunca me viram bravo (nem eu sabia que era uma fera,... afinal iria doer mais o papo com o Carioca do que uns tapa do negão nas minhas “oreias” !
Deixaram-nos entrar no Paulista, com as recomendações que ali era uma casa de respeito e que se fizéssemos algum gracejo indevido seríamos imediatamente expulsos de lá.
Todo mundo parou pra ver aqueles 5 branquelos entrando no salão.
Parecia um Congresso de Pai de Santo: todo negão vestido de branco e nós, com cara de estudantes, também! Lembrando que eu estudava medicina e, portanto com a indumentária apropriada, ou seja, tudo branco também. As mocinhas com roupas finas, elegantes.
Tava lá no balcão um amigo, o Tião, que morava perto da minha casa e era o goleiro do time do bairro que eu também jogava. Ele deu um sorriso daqueles e veio me abraçar! Putz,... que sorte! Isso fez com que todos do salão relaxassem seus ânimos.
Tião, um grande amigo, apresentou-nos a outros amigos ali presentes e então passamos a conversar alegremente, já relaxados do incidente inicial.
- “Seu pai é Delegado, o coisa feia? Quá quá quá....! Eu tava aqui só vendo a sua cára-de-pau. Se a irmandade descobrisse que você estava mentindo, você tava frito e eu ia aqui assistir de camarote! kkkk ... “
- “ O Tião, fica frio aí, Meu! Não vai espalhá isso por aqui senão eu tô é fudido!
- “ Deixa quieto branquélo filho da p., é só você se comportar direito aqui que não tem encrenca.
Tião nos apresentou a mais alguns amigos e amigas. Entre elas, a Beatriz.
Hum..... Beatriz! Uma linda mocinha de aproximadamente 1,70m e uns 50 kilinhos, toda bem distribuída, nariz afilado, cabelos longos e sedosos, seios religiosos olhando para o céu, pernas torneadas, cinturinha de princesa, um cheirinho do Paraíso!
Ela era a verdadeira Estátua da Idolatria! Todo mundo que passava por ela só dizia: “ Virgem Santa,.... Ai minha Nossa Senhora,..... Meu Deus do Céu,.... Que os Anjos digam amém!....”, ... Mas como não sou tão católico, virei pro Tião e bradei: “puta que pariu, que mulata gostosa!”
Tião que tomava uma cerveja engasgou ao ouvir, olhou pros lados e deu risada também.
- “ É, Beatriz é a morena mais cobiçada desse pedaço. E dança como ninguém. Mas ela já tem dono e é melhor você não mexer com ela que o cára é durão e tá lá na pista dançando com a Simplicia. Melhor tu se mancá, bebê tua cerveja e puxá o carro logo senão quisé levá uns tapa na oreia,... Ô seu branquelo do cacete.!”
- “ Deixa comigo, que eu me entendo com aquele negão. Vou lá resolver meu assunto com o filho da mãe!”
Todo mundo ficou olhando com medo, enquanto eu me dirigia até o negão, de nome Vado (Osvaldo). Mas, ninguém sabia que Vado era meu irmão de leite porque quando eu nasci minha mãe me levava pra amamentar na mãe do Vado. Crescemos amigos e nossas famílias se respeitavam e ainda se respeitam. (mas é claro que eu não ia contar isso pra minha turma, muito menos pro Tião que também “se cagava de medo” do Vado.
- “ E aí, meu irmão! Que saudade de você! Como está sua querida mãe e seus irmãos? Que bom te ver por aqui, Vado!”
- “Alemãozinho, seu filho da puta! Você aqui no meu cafofo? Cara que legal, vamos tomar umas aí pra comemorar. Tudo por minha conta, ta falado? Tudo aqui pra você tá liberado geral”
Demos um abraço muito caloroso, enquanto a platéia toda ficava ali olhando sem saber o que estava acontecendo. Então eu pedi pro Vado não contar nada pra ninguém sobre nossa amizade porque eu queria ter muita moral com meus amigos e o pessoal que estava olhando o assunto....!
- “ Claro, meu irmão! Você é meu irmão e se alguém aqui olhar feio pra você, vai ter porrada! Vou te apresentar minha namorada, a Beatriz. Se você quiser dançar, pode dançar com ela, pois não tem ninguém nesse mundo que dance mais que ela!”
Não deu outra: segurei aquele lindo e delicioso corpinho da Beatriz e dancei horas incontáveis. Acabei me apaixonando por Beatriz... cada vez que uma musica mais serena tocava, naturalmente nos encostávamos e eu sentia o seu calor, a sua respiração, aqueles seios quentes tocando em meu peito, aquelas coxas roliças e desenhadas por Deus, os dentes maravilhosos, orelhinhas tão bonitinhas, narizinho tão lindo, lábios que quero beijar sem parar, um vestido sedoso .... e outra vez o meu querido e “infalível companheiro” ali embaixo querendo hastear a Bandeira Nacional justamente com a namorada do meu amigo e irmão de leite que estava presente!
Oras, pensei: com a Regina eu fugi porque ela era do Carioca e o Carioca não estava próximo.... porque eu iria agora cair na tentação de cobiçar a mulher do próximo, justamente quando o próximo estava tão próximo? Pecar contra esse mandamento nessas condições é pedir pra conhecer o céu mais cedo (ou o inferno)! Então, chamei minha turma (agora eu era o chefe) e disse:
- “ Cambada: hora de levantar acampamento.! Vamos embora e dormir mais cedo que amanhã vamos jogar lá no Sanatório Santa Teresa e não podemos perder o jogo por causa de irresponsabilidade, e antes que o tempo esquente por aqui!”
Bem, claro que ninguém queria ir embora. Afinal, batatinhas fritas, linguicinha calabresa, caipirinha, cervejas,... tudo por conta da casa estava sendo um “manjar dos Deuses”. Mas, a expressão “ antes que o tempo esquente por aqui”, era um cardápio que, mesmo não sabendo por quê, ninguém estava curioso para experimentar!
Fomos embora rapidinho daquele salão, agradecendo a todos aqueles que ficaram nossos amigos, cumprimentando-os com sorrisos, abraços e sob os efusivos convites para retornarmos. Abracei meu irmão Vado com muito carinho, beijei-lhe o rosto fraternalmente e disse:
- “ Meu querido irmão Vado, gosto muito de você e você é será meu irmão a vida toda. Sua namorada Beatriz é linda, maravilhosa. Adorei conhecer e dançar com ela. Desejo a vocês toda a felicidade do mundo... e sussurrei aos seus ouvidos: “ se por acaso algum dia você não mais estiver com ela, pode deixar que vou cuidar dela com muito carinho em homenagem à nossa amizade!”
Vado morreu, do coração, alguns anos depois. Nunca mais soube de Beatriz.
Hoje, cada vez que danço com alguém que goste e saiba dançar, revejo aquela linda morena dançando como um princesa, sorrindo, de braços abertos à minha espera!